segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Triângulo Amoroso Bizarro

Como nas terras do Barão é sempre noite, o ônibus que desce o barranco de terra em direção ao lago Cócito vem com as poucas luzes que ainda funcionam acesas. A escuridão não atrapalha, pois o motorista faz o mesmo caminho há uma eternidade. Sacolejando e deslizando pela buraqueira enlameada que cerca o lago, a velharia transporta poucos passageiros por vez. Deixando atrás de si o rastro liso e paralelo dos pneus, essa desculpa precária para o transporte público atravessa o breu sem se importar com as pequenas criaturas que resolvem cruzar seu caminho. Com guinchos e gemidos de cansaço, o ônibus pára na frente da única construção em todo o círculo que circunda o Cócito. É o Bar do Pântano, última parada. Com um suspiro aliviado, o ônibus abre sua única porta e fecha seus olhos para um breve descanso. Parece que as chapas de metal relaxam do esforço muscular da descida e a jardineira, surpreendentemente, parece ter se deitado. Coçando o saco, desce o motorista e se dirige ao negro enorme que fica na porta do bar.

- Bonsoir, Anteu, tudo bién?

- E aí, Maurice? – O motorista cospe no chão – Noite tranqüila?

- Por enquanto... É esse aí?

Olham os dois para o único passageiro que desce do ônibus. Os outros assentos estão todos vazios. É um homem magro, pequeno, que carrega uma caixa preta com uma alça e aproxima-se dos dois olhando para os lados.

- É, hoje foi um só. Maldita calça do uniforme... – e enfia os dedos na virilha novamente ajeitando as intimidades.

- Vai entrar para tomar um petit café?

- Não, Maurice, valeu. Hoje eu quero voltar rápido. Cuida do moço aí?

O pequeno homem que se aproximava abraçado a sua caixa preta tentava pisar com cuidado no chão incerto e não sujar os sapatos.

- Trés bien, boa viagem de volta.

- ‘té, nego.

Enquanto o homem da caixa preta se convencia de que sujaria a barra das calças de qualquer jeito, as luzes vermelhas traseiras do ônibus que Anteu dirigia desaparecia na escuridão.

- Nome? – Pergunta o negro.

- Valesi. Fernando Valesi. – E olha em volta desconfiado. Saca do bolso de trás um lenço e limpa cuidadosamente o suor da testa.

- Plesir; Maurice. Seja bem vindo. – E empurra a porta para dar passagem ao novo freqüentador do bar.

- É... Este bar é... como perguntar?... Tem hospedagem aqui por perto?

- Bom, se você quiser procurar o Hilton, deve ficar ali na esquina – e meneou com a cabeça uma direção qualquer. – São só quatro estrelas, espero que você não se incomode.

Instintivamente, Fernando Valesi seguiu com os olhos para a direção que o negro apontava apenas para encontrar contornos difusos de vegetação contra o lago no escuro.

- É... sinto muito, eu não quis desrespeitar seu negócio. Me desculpe.

- Não por isso. Não é meu negócio, sou apenas o segurança. Bem vindo. – E empurrou o homem para dentro.

Fernando Valesi viu-se em um bar retangular feito todo em madeira e alvenaria. No chão, tábuas grossas. De frente para a porta, um longo balcão de madeira isolava o bar. Atrás deste um homem careca e corpulento com um vasto bigode preto. Atrás dele, a maior variedade de garrafas já vista. Todas as formas, cores, tamanhos, rótulos, tampas e adornos estavam ali. No fundo da sala, um palco de um palmo de altura agüentava à duras penas a banda de blues. Um baterista miúdo incrivelmente jovem, um guitarrista alto, magro e careca, um baixista gordinho e um cantor gaitista com uma vasta cabeleira preta desgrenhada escondida embaixo de um chapéu cinza velho e furado tocavam animadamente. Ao lado do palco, uma passagem para outra sala do bar. Nesta peça, algumas mesas espalhadas aleatoriamente continham as pessoas mais estranhas que Valesi já havia visto.

Quando ele entrou, ninguém lhe olhou, nem o homem atrás do balcão. Encontrou uma mesa vazia e se ajeitou, depositando sua caixa aos seus pés. Brevemente, um garçom se aproximou, bloquinho de notas na mão.

- O que vai ser?

- Posso dar uma olhada no cardápio? – O garçom deu uma risadinha

- Primeira vez aqui?

- É, cheguei agora.

- Temos tudo o que você quiser, basta pedir.

- Tudo?

- Tudo. De bebida, logicamente.

- Então tá. Eu vou querer uma taça de vinho bordeaux Calon Segur, de 1947, por favor.

- Ok. – Anotou entediado e virou as costas.

- Espera! É sério isso mesmo? Vocês têm Calon Segur?

- Prefere trocar pelo Beychevelle?

- Não, não... não... pode trazer o Calon Segur...

Não demorou dois minutos para taça estar na sua frente. Em não sabendo como reagir, riu alto. Ninguém olhou.

- Isso aqui é o paraíso! – Provou um gole. Não entendia absolutamente nada de vinhos, apenas lera aquele nome numa revista uma vez. Se o garçom tivesse lhe dado qualquer vinho nacional, não saberia a diferença. Ainda assim, era o melhor vinho que já tomara na sua vida curta.

- Claro que é. – O garçom virou as costas e foi cuidar da vida. Enquanto isso, a banda aquecia mais uma música.

Entraram com uma guitarra chorada, marcando batidas secas e deixando muito claro que aquele era o momento das lamentações da noite. Tocavam “How blue can you get” do B. B. King. A banda era boa sim, tocavam muito bem, com muito cuidado e energia. A letra era típica de blues, com muita reclamação de uma mulher que não dava valor no amor de um homem.

- Senhoras e senhores, boa noite. Eu sou o Paulo Gazela e vocês estão ouvindo o blues que rola a noite inteira aqui no Bar do Pântano. – o cantor e gaitista com sua voz rouca aproveitava um momento em que a música ficava mais baixa para falar – Eu sei que estamos aqui nesta noite honrados com a presença de um grande saxofonista que vai ser obrigado a dar uma canja aqui com a gente. Fernando Valesi, vem para cá!

Fernando olhava em volta para as poucas pessoas que o aplaudiam. Como eles sabiam? Abriu sua maleta preta e tirou de dentro o saxofone reluzente. Caminhou pelo bar e subiu ao palco, de onde as notas brotaram facilmente e encheram a noite. Subia e descia pelas escalas com a facilidade que os anos de experiência lhe davam e que a banda apoiava. Após uma música e eles desceram do palco conversando.

- Cara, muito obrigado, o som de vocês é ótimo.

- O que é isso, bicho, quando a gente ficou sabendo que o grande Valesi vinha com seu sax para o bar, armamos logo uma canja. Os meninos ficaram muito empolgados de tocar com você.

- Vocês são ótimos. Isso aqui é ótimo. Aliás, que lugar é esse?

- É um lugar onde as pessoas se encontram. E bebem e tocam. Depois a gente sobe para tocar mais uma.

- Eu vou ter que recusar o convite. Seu som é ótimo, mas eu vou dar uma olhada por aí, conhecer o resto do bar.

- Não tem muito mais para conhecer. É isso aqui. Ali na sala ao lado tem mais mesas. Lá para o fundo, uma saída para a varanda, que dá vista para o lago, mas não tem muito o que ver. O lago é todo escuro.

- E subindo essa escada?

- Uns quartos. Despensa. Cozinha. Nada de muito importante.

- Então a vida se resume a beber e tocar blues?

- É, bicho, não sei se você pode chamar de vida, mas é o que fazemos.

- E tem como rolar um jazz?

- Não é muito a nossa praia, bicho.

- Vocês não acham que o blues acaba ficando chato? Quer dizer, é só isso, o tempo inteiro.

- Por toda eternidade... Fazer o quê, the blues is alright.

Conversaram mais amenidades e tomaram umas doses. Teve que pedir licença para o novo amigo. Fernando Valesi era um jazzman, mas o blues combinava com o ambiente. Em não tendo mais o que fazer, pediu outra taça de vinho e foi passear pela varanda, que dava vista para o lago que não tinha vista.

- Você continua tocando muito bem. – A voz feminina que ele ouviu era fria. Um refresco no calor úmido que empapava e pele e as roupas.

- Luana? Que bom ver você! O que está fazendo aqui? Que bom te ver!

- É bom te ver também. Como tem passado?

- Bem, bem... Fiz uma participação num disco de um gringo que veio dar uma palestra na faculdade que foi bem legal... Meu disco solo também está vendendo, gravei não faz muito tempo, como você sabe.Também tem as aulas... Mas e você como você está? Está ficando por aqui?

- Estou bem. Parabéns por essas coisas todas, pelo disco também, eu não sabia. Estou por aqui, como todo mundo, vendo o tempo que não existe passar.

Valesi debruçou-se na precária amurada da varanda que dava vista para o lago.

- É mesmo, Lu, parece que aqui o tempo não passa, não é mesmo?

- Ou que o tempo não existe.

- É. Tem visto o pessoal? Cleber, Hércules, Bruninho...?

- Não, ninguém. Poucas pessoas vem para cá.

- Isso é verdade. Aliás, quanto tempo você está aqui? E que lugar é este?

- Você ainda fala comigo como se nunca tivesse percebido, não é mesmo?

- Desculpe, percebido o quê?

- Lá vem você de novo! Será que eu vou ter que te explicar isso? Ou você só vai perceber se eu escrever numa partitura?!!

Valesi ficou sem jeito. Não soube o que responder, apenas olhava para aquela menininha doce que sempre estava em seus shows e lutou com a memória tentando identificar do que ela estava falando. Lembrava dos shows sim, lembrava de com quem tinha tocado, quais tinha tocado bem, quais tinha errado, lembrava das músicas e dos lugares, mas não se lembrava de nada mais, a não ser do rosto dela sempre ali por perto. Lembrava dos bares e restaurantes para onde iam após os shows, mas era só. Tentou reconstituir seu dia, mas só se lembrava de ter acordado no ônibus sacolejante a noite abraçado no case de seu saxofone tenor. E o dia anterior? Nada. Flashes. Paredes brancas. Um hospital, talvez?

- Desculpe, eu... realmente não sei o que dizer, Lu. Sei que você sempre esteve lá, comigo, mas... Sinto muito. Eu me lembro sim, de todos os shows, os bares, os festivais. Mas... Sinto muito.

Era como encontrar um rosto familiar sem nome na noite. Qual era o papel dessa moça na sua vida? E porque ela era tão mais jovem do que ele? Profundamente machucada, ela entrou no bar, empurrando pessoas e se perdendo entre as mesas. Valesi dedicou-se à memória novamente, e não encontrou nada ali que desse nenhuma pista sobre Luana, a jovem que o conhecia tão bem, mais do que a ele próprio.

- Quem é você, menina? – Sussurrou para si mesmo.

- Bicho, você está procurando nas memórias erradas. – Era a voz rouca de Paulo Gazela que trazia a resposta. – Você se lembra onde ela estava. Tente lembrar onde ela não estava.

- Impossível. Ela estava em todas. Todas mesmo: todos os shows, festivais, os barzinhos que a gente ia, na gravação do meu disco... Não, na gravação do disco ela não estava, nem no lançamento. Porque ela não estava no lançamento do meu disco, Gazela?

- Ela parece ter sido importante, para estar em todas. Como é o nome do seu disco?

- In Memorian. É meio mórbido, mas eu tenho uma faixa dedicada a cada saxofonista falecido no qual eu me inspirei, e o disco como um todo é dedicado a...

A luz da memória explodiu como uma cortina aberta violentamente. Estava tudo ali, tudo claro.

- ... à Luana. Merda! – Correu para dentro do bar, procurando pela menina. – Luana, volta aqui! Lu?!

O pequeno bar não poderia tê-la escondido. Abriu portas, correu pelos corredores e até nos banheiros procurou, mas não a encontrou. Encontrou Paulo Gazela fumando um cigarro na varanda conversando com outra mulher. Não sabia se deveria se aproximar e interromper, então ficou parado na porta, lembrando da dedicação da Luana e sua quase onipresença na sua carreira musical até o dia em que fora brutalmente atropelada. Visitou-a apenas uma vez no hospital. Parecia estar se recuperando bem.

- Ah, olha ele aí. Valesi, cola aí, bicho!

- Oi, tudo bem... – Novamente, o frio lhe percorreu o corpo quando cruzou os olhos com a outra mulher. Essa não estava escondida nos confins da memória. Estava muito presente em cada centímetro da sua alma, em sua música, nos fraseados e até nos títulos de algumas de suas músicas. – Eliza!

- Oi, Fernando. Tudo bem?

- Você está linda... – Não sabia mesmo o que dizer, mas era verdade, a mulher resplandecia, alta, esguia, metida em um vestido preto de verão com as costas nuas ela ainda se movia conforme ele se lembrava, quase sem tocar o chão, leve, solta. Parecia não se envolver com o mundo real. – Como você está? Como vai seu marido?

Valesi havia tocado na festa de seu casamento. Fora a coisa mais dolorosa que já havia feito, criar poesia e beleza num momento em que sua vontade era criar destruição. Usara seu saxofone contra os convidados como se fosse uma metralhadora. A banda que o acompanhava mal conseguia compreender suas intenções musicais.

- Eu estou bem e ele... Bem ele não está aqui, como você pode ver.

- Não, não está – Animou-se – Poucas pessoas vêm aqui. Quanto tempo faz que não te vejo. Quer dar uma volta? Ir até o bar?

- Não, obrigada. – Lacônica.

- Por que não?

- Fernando, não faça isso com você mesmo. Você sabe que não vai ser legal para você. Não vai ser diferente daquela festa de ano novo.

Foram dois dias incríveis na casa do seu produtor. Eles se encontraram às 20h no dia 31 de Dezembro e ficaram durante a festa que só terminou às 9h da manhã do dia primeiro. Dormiram juntos, acordaram juntos e passaram o dia primeiro e 2 de Janeiro na beira da piscina, conversando. No dia 3 de Janeiro, eles já não existiam mais um para o outro, sem maiores explicações. A vida às vezes conduz as coisas de maneira estranha. Ele nunca pensou que pudesse ter sido culpa sua. Nem nunca pensou que pudesse ter sido culpa dela. Só se encontraram novamente um ano depois. Ela já estava noiva. Sentiu o gosto amargo do eterno arrependimento na boca e novamente observou o lago.

- Eu sinto muito. – Uma frase muito utilizada no Bar do Pântano como Gazela testemunhava. Ela virou as costas, sem despedir-se. Não iria longe, o bar era pequeno.

- Porra, Gazela, o que é isso? Meu passado me condenando pelos meus erros? E o que elas estão fazendo as duas aqui?

- A mesma coisa que você está fazendo aqui, bicho. Arcando com as conseqüências. As pessoas não vêm aqui para serem curadas. A cura ficou muito longe, lá atrás, na estrada de terra.

- Isso aqui é inferno, Gazela.

- O inferno é uma coisa muito pessoal, Valesi. Fica dentro de cada um de nós. Você vai ter que aprender a viver com isso.

- Por quanto tempo?

- Você a essa altura já deveria saber que o tempo não existe. É assim que as coisas funcionam. A Luana daqui a pouco aparece, bem perto de você como sempre esteve. E a Eliza também. Só que cada uma olhando para um lado diferente.

- Será sempre assim?

- Até onde eu sei, sim.

- Pelo menos eu ainda posso comer a Luana na frente da Eliza. – Tentou rir de sua piada machista, procurando no rosto do gaitista um alento. Ele permaneceu sério.

- Você vai se envolver com a Luana sim. E talvez com a Eliza também. Mas não se iluda: aqui as coisas não mudam. Você não gosta da Luana e nem nunca vai gostar. Ela se tornará uma presença difícil para você se você fizer isso. E a Eliza nunca vai gostar de você, mesmo que você consiga convencê-la a dar para você. Novamente: aqui as coisas não mudam.

- O inferno são os outros.

- Como eu disse, o inferno é uma coisa muito pessoal.

- Então eu estou preso.

- Está sim. Preciso subir para o palco. Quer subir com a gente? Conhece “Damn Right, I´ve Got the Blues” do Buddy Guy?

- Conheço sim…

- Então, quer vir tocar?

- Vamos… Fazer o quê, the blues is alright.

2 comentários:

Unknown disse...

Então, o paraíso talvez fique na esquina com o inferno?


Tudo no mesmo bairro,no mesmo fim de linha...
Dentro da mesma pessoa.No mesmo lugar.

É....eu gostei do texto.
Concordo com bastante coisa.

Personagens conhecidos,histórias já ouvidas(talvez?)...

Uma boa noite.
*prendeu minha atenção a história!muito bacana!!

Felipe Tazzo disse...

Seguinte: mudei este cazzo deste blog para www.nonocirculodoinferno.blogspot.com.

Este aqui não vai ser mais atualizado.